27 de agosto de 2017

A bota

Eu fui ter botas no dia que decidi caminhar. Mas não era qualquer caminhada. Era uma daquelas que pedia pó, pedia pedra, pedia desbravar. Alma sedenta, paixão aventureira e uma dolorosa falta de algo que não sabia dar nome. Então comprei a bota que me disseram que era própria. Um paliativo para o problema dos inquietos. Não havia muita convicção do que estava fazendo, apenas o desejo pela jornada.

Não nos entendemos muito bem no primeiro momento. Desajeitada, ela se agarrava aos tornozelos e aos pés com o desespero que só as botas novas têm. Saía pisando no que alcançava, molestava outros pés, chutava pedregulhos, agia como se tudo lhe pertencesse. Para piorar, não combinava com nada do armário. Aquele mundo era outro.

Então roupa foi comprada para a bota. Jeans, camisetas, coisas confortáveis que, disseram, eram tão feias quanto a bota, mas que fariam conjunto com ela. Pouco foi gasto no processo, tecidos antigos (esquecidos) foram reformados. Passados felizes e tristes foram visitados e perdoados. Depois daquilo tudo, finalmente a bota se sentiu pronta para enfrentar seu destino!

As primeiras caminhadas dela foram na cidade dura, para "amaciar" o solado. Ela não estava feliz. Queria um solo nem tão negro, nem tão frio. Protestou horrores numa viagem de carro e só parou de reclamar depois de entender que não ia ficar na lata para sempre. Saindo do transporte, finalmente a bota pôde se libertar daquela sina terrível de papelão, metal e asfalto.

Ela pisou na terra pela primeira vez. E não era qualquer terra, era Ollantaytambo, uma terra com pedras ancestrais, onde pés muito menores que os dela sustentaram uma civilização inteira.

A bota subiu altitudes, degraus e degraus. Dobrou as atitudes dos pés, ensinou humildade aos tornozelos e o valor do descanso a todo um corpo pesado. As coisas que não falam sabem desses assuntos e, no silêncio, ensinam a arte do confiar.

No alto de um templo do sol do Valle Sagrado, a bota parou e ficou por tanto tempo, mas por tanto tempo, que deu cãibra no pé que ela carregava. Esperou pelo pôr-do-sol sem resmungar. Orações são verdadeiras quando escapam sem libertar um pedido.

Depois a bota dificilmente saiu de fora de seu pé. Ela subiu até uma cidade de pedra nas alturas, pisou nos Andes, mais de uma vez. Conheceu o seco e árido deserto. Viu lagos, pisou em glaciares, cruzou lagunas congeladas. Ela andou na areia fofa, antes de chegar à molhada. Deu passos pequenos, grandes, indecisos. Ela escorregou, se machucou e continuou a andar. Fez caminhadas lindas, enfrentou outras nem tanto. Mesmo depois de tanto tempo juntas, eu e ela ainda vivíamos separadas. Éramos o instrumento uma da outra. E por mais que nos protegêssemos, não sabíamos de cuidar. Paciência.

Um dia, cansada de uma longa caminhada, houve um "obrigada". Botas ensinam gente que usa botas que o importante é o caminho, é a pergunta e a dúvida, é o movimento; não é o chegar.

Houve atenção ao invés de espera. O pano e a água tentavam limpar o pó. Não saiu tudo. Não era possível apagar as marcas da caminhada sem se danificar toda a estrutura de grãos, de lembranças cuidadosamente armazenadas. O brilho do novo se foi. A idade agora era aparente. Jornadas fazem isso de enrugar peles e couros. Havia aceitação e gratidão no ato. Amar por se amar.

Na hora da espera, aquela que preparava para outro caminho, bota, pé, tornozelo e a gente, todos estavam harmonizados, prontos para pisar em mundos diferentes. Prontos para atravessar.
Thais Simone.

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